sábado, 28 de março de 2009

Poema Preta

Da mulher fez-se o homem
e deles o verbo e a dominação.
Eu, da palavra quero a libertação


Eu, mulher negra, nascida escrava, sem nação definida, sofri na carne,
na alma e em todas as reentrâncias, a fúria humana, desumana, insana,
que vocês talvez, espero, nunca tenham sentido, sintam, sentirão.
Um pouco dessas marcas estão sob forma de palavras neste livro.
Anastácia

Nascida
Quando nasci não chorei.
Fiquei quieta.
Diziam-me morta.
Agora que tenho algo a dizer, calam-me.
Os seres humanos são tão idiotas.
Vou morrer do jeito que nasci:
Sem gosto pela vida e gostosa para quem me quis.

Estações
Me desmancho á luz da aurora
ao fim frio do outono
onde embrulho meu coração
guardado na gaveta
esperando a próxima primavera.
O inverno chega em meu corpo,
carvão sem brasa.
Não podendo gemer o frio
meu corpo fala a falta de roupas adequadas
Sem luz na masmorra
meu corpo só acende com lenha branca
enfiada a ânus e vagina
O coito não dura uma estação
Noite e dia, lentidão chovida
frio e solidão, alma esquecida
Vida de escrava não acaba
no vão das horas
Não acaba na imploração
de ir embora da terra
Quero tanto o corpo
só o corpo ficando frio
Quero morrer no verão

As Palavras
As palavras entram em mim como flechas sedentas atiradas
Que alvo querem atingir essas palavras?
A carne sente o golpe, a palavra se espalha em veias e artérias
No cérebro, o estrago está feito
O mundo de letras sobrepostas
Em cima, embaixo, ao lado do ouvido e olhos
Atormentadas, se chocam umas ás outras.
O que querem dizer?
Falar palavras, impossível
Escrevê-las, improvável
O que resta é essa consumição verborrágica
Essa desilusão sem estilo gramatical
Esperança, palavra expulsa desse vocabulário de caverna cerebral.

Nega
A criança só é quando brinca.
Eu fui macaca doente
brincava de morder gente.
Fiquei muda e sem dente
virei brinquedo do filho e do patrão
Escrava da escuridão.

No meu corpo tombada
de dia servia,
de noite gozava.
Já que meteu na nêga,
vou brincar de cair na cilada.

Brinquedo
A bola de meia velha
que meus pés não gastaram,
não gastam, não gastarão,
passa em meus dedos infantis
como um sonho-terremoto.
Sem controle
treme o corpo que apanha da menina.
Tão lambidinha ela, tão branquinha,
pele e roupa
e obscuro olho de rezar.
Minha dona é pérfida menina.
Me penteia
arrancando fio a fio
grossas somas de caracóis negros
Depois,
laço no cabelo, sim.
Sapato!
Nem meia
Boneca escrava é sem luxo.

Mulher fede
Dizem que mulher negra é diferente da branca
porque é suja e cheira mal.
Isso é que enlouquece os homens todos
(de qualquer cor).
Pra quê tanta água de cheiro, branquinha,
se nos grandes lábios o nariz do teu homem não chega?

Desprazeres
Eu fui calada pelo couro e o ferro forjados.
Minhas patroas, pelo véu de missa e o buraco do lençol.
Nunca deram o rabo.

Poema escuro
Quando me calaram a boca
na verdade taparam meus olhos.
Sem sabor as cores somem...
A boca e olhos se comunicam
na verdade consumida.
Só vejo o que minha boca pode exprimir
e seco no abismo mudo dos meus ouvidos
a vertigem de não poder gritar.

Gentileza
Meus mamilos
são sugados pelo coronel
enquanto minha alma voa no linho
e no papel em branco
que agora sujo.
“ Bobagem de uma prisioneira calada pelo mau humor dessa gente gentil”.

Mordaça
A boca espreita a flor
antes que o orvalho a beije
Não posso beijar-te
Invejo o entardecer
por onde escorrega
este precioso bálsamo translucido
À mim basta escutar
as ablhas que copulam ferozes
a flor lavada,
enquanto sonho e murcho.

Ódio de Mãe
Meus donos os foram muitos
- os que me possuiram
- os que me julgaram
-os que me mandaram
-os que me bateram
-os que me ignoraram
-os que me humilharam
-os que me faleceram
Homens sujos, sem caráter.
Medíocres, burros.
Nunca souberam que minha mãe
mora dentro de mim
e a tudo provê.
Minha mãe é o ódio de não ter morrido
ainda botão
E se não morri, é da mãe-ódio
o alimento de minhas veias
E a cada dia vivo mais.
O ódio cresce e não me deixa morrer.
È esse meu orgulho.
Ficar aqui nesta terra.
Viver o não-viver.


Açoite
As mãos flácidas batem-me
até cansar o sangue de seu dono
até os músculos do braço tremerem,
como se estivessem aplaudindo o fim do ato.
O espetáculo em preto e vermelho.
Sou eu a negrinha insolente
caverna de prazeres
Teu ódio é não teres de tua amada nunca espancada
o gozo e o menino que trago em meu ventre
O fruto que negarás, te matará um dia
com as mãos fortes que as tuas ensinaram
a sacar gatilho que julgavas te defender.

Poema-ex
As brumas,a paixão pela vida
E pelo mar (morte negra afogada em mim)
Temperam meu esquecimento
E quanto mais não sou história
mais apareço
e no fio do sangue da galinha d’angola
me reconheço,
me alimento,
me sexualiso.
Mulher de mulheres ancoradas.
Coragem não me diz nada.
Vida!
É essa que desmaia na sombra,
desmerece,desbota
na água rala do canto do sonho seco.
“Sonhar não é viver”.
Insiste vida!
Ela existe em ti e nos outros
Voa ,voa vida!
Ela sabe onde estás agora
Permita,parta,divida
Renuncie ao fel.
Viva o meu amor
Viva meu amor
O balão não sabe onde ir
A vida o leva no vento.
Eu sou o vento.

Verbo
Falar é confirmar o limiar do existir
e não existir
Inventando
Re-inventando
Codificando o inexplicável
Falar, falar e sentir
Não falar, sentir e não poder falar
Sentir por falar o que não quer
Não querer e sentir mais do que as palavras
Mais que expressão verbal
Mais que língua esfregada na boca,
no céu, no dente,
No carrossel úmido que vem e vai do intestino
do destino-mulher, do rumo incerto
Do feto, Do veto, Do proibir
Eu me proíbo e me sucumbo
E seco dentro das roupas, das louças, do bordado, do novelo de lã
Eu, lã proibida de tecer aconchegos
Eu me nego
Eu me negra
Eu, incerteza dentro e fora da cabeça
No espaço sideral, na Via-Láctea, eu me nego
Até quando esse não-querer, e querendo sem saber, me desaprendo
Só assim estarei livre do meu desassossego
Quero ser renda, bordada com fios de alegria

Ajeum
Alegria deve ser como um prato cheio de acarajé
que ninguém vai ousar arrancar de meus braços
Alegria deve ser como cheiro de dendê e camarão
Quem dera eu tivesse essa sorte:
Ter um prato cheio de acarajé.
Cheirar muito, comê-los todos, lamber os beiços.
Isso sim é alegria.
Boca com sabor, barriga cheia de vida.
Pena que nem a merda que cago traga um pouco dessa nostalgia.

Poema
Essa falta de jeito
de compostura
não ajuda a semântica do poema
Essa ternura atrofiada
do porão ao rés dos pés à cumeeira beirando os olhos mareados
Nostalgia da morte
Essa que não chega nem com o sol, nem com a lua
Imagem de carvão esculpido
untado a banha de sal que sai de mim
Ódio de mim.
Chamo a morte!
Será que ela traz o meu fim?

Ao vento
Eu amo o que de mim não saberei
nem saboreei e nem senti aquele cheiro de mato
O manto do céu é vento
Não, não senti escorregar entre os dedos
estrelas caídas no mar, agora areia.
Não soube amar
Não quis amor
Ignorância vestida de mulher
Pixada, marcada, machucada, mordida,
lambida, gozada e feita outra vez escrava
Amo o que de mim não saberei
e se souberes conte uma, duas... tudo outra vez

Insônia
O paraíso é o sono quando não sonho
O sono sem sonho é real, talvez como a morte
Talvez deitada e para sempre, exposta ao nada, descanse
O corpo entrega-se ao vazio do ser, a inexistência confirmada no escuro
Não me sei, nem quero sê-lo, nem carta, nem alforria
Que bom nada ser a cada novo dia.


Pra morrer
Duas mulheres não fazem um terceiro ser
Não copulam a flor de cabeças e braços, pernas...
Se eu pudesse amar outra mulher, talvez abortasse o ódio,
queimasse o fel, o gozo no pau do homem
Talvez essa mulher de dedos de fado e doce mel
me tocasse tão dentro e profundo
que a dor sem medos gritasse “Estou fora de ti,
quero morrer com o gado no abate a paulada e corte”.
Quem seria essa mulher, pois todas me invejam?
“”Tu és a mais bela, a que fede mais a sexo selvagem. Morrerás só.”
Mulher de negro como eu,
de escuro claustro e lâmina de língua, me possua
Minha vida, pois, já é tua.

Cena
A barca, a carga, a marca no negro torso.
A alma, a palma, a lama nos pés mulatos
A cara, a casa branca, a senzala junto ao curral
Curra o negro
Cura o açúcar, o cacau, o café pro sinhô ganhá mais e te matá, povo de Guiné
Tanto trabalho preto, tanto ouro, pra quem é ?
Sinhazinha gasta tanto, sapato no pé, sombrinha na mão, corrente camafeu
Três nêgas limpando o chão.


Há fogo
O fogo afoga e queima as entranhas
A narina espia os olhos sem coragem
O ar devoluto entra
O fogo alastra nas árvores do pulmão
A manhã escorre à mão lavada de lava refeita em ódio
Não me entendo em nada.

Perfeito
A mulher é feita de obra incompleta
É plena, eu sei
de perfeição
E perfeição é tudo o que o acaso sustenta
e tentamos explicar ao microscópio da razão
Perfeição é estar bem cansado,
suado em pó de cativeiro
e deitar àquela grama verdinha,
fresca e orvalhada
lambendo-me todo o corpo
Perfeição verde e azul
que é o céu refletido
na menina que mora no globo ocular

Não é hoje
Sem fluxo
Sufixo
Crucifixo
Ibá assentado, benzedura da vovó
Recorri aos dias vividos na escravatura
Loucura inválida
Infalível receita de viver
Sem horas pro acaso, nada sobra
Todo o meu existir é consumido ao cerne
Vida que a morte cobiça
Não é hoje
Não é hoje
Um negro dura aí uns sessenta anos se bem usado
É lucro arrebatado do pensante homem-dono.
Estou comprado e perdido
entre os elos da corrente e do incoerente.

Voa
Voar em ORIXÁS
rodando essências de tabaco e mirra
e flor e liberdade
A água é fresca
O corpo cansa no registro
De súbito o vôo acontece
É deus negro
Deusa de plumagem de cristal
É tanto céu descendo e eu subindo
Subindo e assumindo tudo o que não compreendo
Homem e mulher existem pro sopro
Que não faz curva no entendimento

Refeita
Hoje estou livre e sã
No casuá do inexplicável,
insustentável suspiro de fêmea
mulher sem corpo
sem a companhia da pele
perto de tudo o que nos vivos é incerteza
Mistério de ter vivido e morrido
e vivido e renascido nas palavras
que agora pronuncio
Esperança é arma engatilhada
Não vamos mais esperar
Quero agora tudo quanto defunto sendo
posso ter e voar
– materializar minha língua
nas mãos de um babalorixá.

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